sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A música antes de compor...



Antes de iniciar uma nova composição, o que se passa na percepção? Quais representações sonoro-musicais (ou não-musicais) estão presentes? Qual música imaginamos antes de sua existência concreta-atual? O que nos guia ao pensarmos numa música enquanto abismo de possibilidades?

Estava lendo um trecho de um livro de Deleuze, “lógica da sensação”, e me vieram estas indagações. O livro é sobre pintura (Francis Bacon), mas é possível “transpor” algumas considerações para o campo da composição musical.

Por que escolher este e não aquele caminho? Este exemplo e não um outro? Agora pouco estava pensando numa nova composição, e sempre o quase mesmo dilema: “pode começar assim... como uma névoa e, aos poucos, coisas estranhas começam a ganhar contorno, encarnar...não-não; melhor começar como um baque: tudo tremendo, como um terremoto etc...”

Mesmo que desse modo seja como um tiro no escuro, ainda considero uma alternativa inicialmente sensata e motivadora, rica em possibilidades que ainda não são propriamente musicais, mas que já me forçam a pensar numa música possível que ainda desconheço: são quadros-figuras-atmosferas pré-musicais: talvez “figuras de sensações”.




“É um erro acreditar que o compositor esteja diante de uma superfície em branco. Com efeito, se estivesse diante de uma página em branco, poderia reproduzir nela um exercício de estilo que funcionaria como modelo. Mas não é isso o que acontece. O compositor tem várias coisas na cabeça, ao seu redor ou no estúdio. Ora, tudo o que ele tem na cabeça ou ao seu redor já está na partitura, mais ou menos virtualmente, mais ou menos atualmente, antes que ele comece o trabalho. Tudo isso está presente na partitura, sob a forma de imagens (visuais-sonoras-conceituais-etc) atuais ou virtuais. De tal forma que o compositor não tem de preencher uma partitura em branco, mas sim esvaziá-la, desobstruí-la, limpá-la. Portanto, ele não compõe para reproduzir no pentagrama uma música que funciona como modelo; ele compõe sobre imagens que já estão lá, para produzir uma música cujo funcionamento subverta as relações do modelo com a cópia. Em suma, o que é preciso definir são todos esses “dados” que estão na partitura antes que o trabalho do compositor comece. E, dentre esses dados, quais são um obstáculo, quais são uma ajuda ou mesmo os efeitos de um trabalho preparatório. Há clichês psíquicos assim como clichês físicos, percepções já prontas, lembranças, fantasmas. Há nisso uma experiência muito importante para o compositor: uma série de coisas que se pode chamar de “clichês” já ocupa a partitura, antes do começo. É dramático. A luta contra os clichês é algo terrível.” (Deleuze, "transposto")





Ou então, poderia ser também de outro modo, mais simples (?) e direto: ouvir outra música, por exemplo, “...quase uma fantasia...”, de Kurtág. Como ele consegue, coisas tão comuns, mas ao mesmo tempo um universo sonoro insuspeito? ...de repente, algo fantástico acontece, como o fantástico nos contos de Cortázar.


“Imaginemos Edgar Poe num dia qualquer de 1843. Sentou-se para escrever numa das muitas mesas (quase nunca próprias), numa das muitas casas onde viveu passageiramente. Tem diante de si uma página em branco. Provavelmente será de noite, e logo Mrs. Clemm virá trazer-lhe uma xícara de café. Edgar vai escrever um conto, e suponhamos que seja O gato preto... O autor tem trinta e quatro anos, está em plena maturidade intelectual. Que inevitáveis fatores pessoais vão desembocar nesse novo conto, e que elementos exteriores se incorporarão à sua trama? Qual é o processo, o silencioso ciclone do ato literário, cujo vórtice está na pena que Poe apóia neste instante sobre a página? Era um homem que amava seu gato, até que um dia começou a odiá-lo e lhe arrancou um olho...” (Cortázar, valise de cronópio)



Ainda não consigo ouvir outra solução ao problema da “música-em-branco”: sempre um clichê com um mínimo de sensação de clichê: uma textura Varesiana, depois uma varredura de campo Bouleziana, entra uma paisagem Schafferiana, um corte – silêncio Kurta-cagiano...



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