Antes de iniciar uma nova composição, o que se passa na
percepção? Quais representações sonoro-musicais (ou não-musicais) estão
presentes? Qual música imaginamos antes de sua existência concreta-atual? O que
nos guia ao pensarmos numa música enquanto abismo de possibilidades?
Estava lendo um trecho de um livro de Deleuze, “lógica da
sensação”, e me vieram estas indagações. O livro é sobre pintura (Francis
Bacon), mas é possível “transpor” algumas considerações para o campo da
composição musical.
Por que escolher este e não aquele caminho? Este exemplo e
não um outro? Agora pouco estava pensando numa nova composição, e sempre o
quase mesmo dilema: “pode começar assim... como uma névoa e, aos poucos, coisas
estranhas começam a ganhar contorno, encarnar...não-não; melhor começar como um
baque: tudo tremendo, como um terremoto etc...”
Mesmo que desse modo seja como um tiro no escuro, ainda
considero uma alternativa inicialmente sensata e motivadora, rica em
possibilidades que ainda não são propriamente musicais, mas que já me forçam a
pensar numa música possível que ainda desconheço: são quadros-figuras-atmosferas
pré-musicais: talvez “figuras de sensações”.
“É um erro acreditar que o compositor esteja diante de uma
superfície em branco. Com efeito, se estivesse diante de uma página em branco,
poderia reproduzir nela um exercício de estilo que funcionaria como modelo. Mas
não é isso o que acontece. O compositor tem várias coisas na cabeça, ao seu
redor ou no estúdio. Ora, tudo o que ele tem na cabeça ou ao seu redor já está
na partitura, mais ou menos virtualmente, mais ou menos atualmente, antes que
ele comece o trabalho. Tudo isso está presente na partitura, sob a forma de
imagens (visuais-sonoras-conceituais-etc) atuais ou virtuais. De tal forma que
o compositor não tem de preencher uma partitura em branco, mas sim esvaziá-la,
desobstruí-la, limpá-la. Portanto, ele não compõe para reproduzir no pentagrama
uma música que funciona como modelo; ele compõe sobre imagens que já estão lá,
para produzir uma música cujo funcionamento subverta as relações do modelo com
a cópia. Em suma, o que é preciso definir são todos esses “dados” que estão na
partitura antes que o trabalho do compositor comece. E, dentre esses dados,
quais são um obstáculo, quais são uma ajuda ou mesmo os efeitos de um trabalho
preparatório. Há clichês psíquicos assim como clichês físicos, percepções já
prontas, lembranças, fantasmas. Há nisso uma experiência muito importante para
o compositor: uma série de coisas que se pode chamar de “clichês” já ocupa a
partitura, antes do começo. É dramático. A luta contra os clichês é algo
terrível.” (Deleuze, "transposto")
Ou então, poderia ser também de outro modo, mais simples (?)
e direto: ouvir outra música, por exemplo, “...quase uma fantasia...”, de
Kurtág. Como ele consegue, coisas tão comuns, mas ao mesmo tempo um universo
sonoro insuspeito? ...de repente, algo fantástico acontece, como o fantástico
nos contos de Cortázar.
“Imaginemos Edgar Poe num dia qualquer de 1843. Sentou-se
para escrever numa das muitas mesas (quase nunca próprias), numa das muitas
casas onde viveu passageiramente. Tem diante de si uma página em branco.
Provavelmente será de noite, e logo Mrs. Clemm virá trazer-lhe uma xícara de
café. Edgar vai escrever um conto, e suponhamos que seja O gato preto... O autor tem trinta e quatro anos, está em plena
maturidade intelectual. Que inevitáveis fatores pessoais vão desembocar nesse
novo conto, e que elementos exteriores se incorporarão à sua trama? Qual é o
processo, o silencioso ciclone do ato literário, cujo vórtice está na pena que
Poe apóia neste instante sobre a página? Era um homem que amava seu gato, até
que um dia começou a odiá-lo e lhe arrancou um olho...” (Cortázar, valise de cronópio)
Ainda não consigo ouvir outra solução ao problema da “música-em-branco”:
sempre um clichê com um mínimo de sensação de clichê: uma textura Varesiana,
depois uma varredura de campo Bouleziana, entra uma paisagem Schafferiana, um
corte – silêncio Kurta-cagiano...
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