sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Auto-retrato em perspectiva: 7 músicas em 14 anos


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Com o passar dos anos, as músicas envelhecem, ou, ao contrário, recebem uma segunda juventude. Ora elas engordam e incham, ora modificam seus traços, acentuam suas arestas, fazem subir à superfície novos planos. Não cabe aos autores determinar um tal destino objetivo. Mas cabe a eles refletir sobre o lugar que tal música ocupou, com o tempo, no conjunto de seu projeto (destino subjetivo), ao passo que ele ocupava todo o projeto no momento em que foi criada.

Escrevi cada uma das composições a seguir me encontrando gradualmente com uma profundidade de campo próximo a n-1. Ou seja, todos os referenciais em foco a cada fase de formação de cada composição, menos "EU", quer dizer: sub-traindo a partir de "meu" ponto de vista os meus relevantes. Por que preservamos um nome? Por hábito, exclusivamente por hábito. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados.

"...um nome como um rastro de intensidade." (...assim nasce mais uma composição!)

Uma música não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui um livro a um sujeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a exterioridade de suas correlações. Numa música, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação.


Não se perguntará nunca o que uma música quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender numa música, perguntar-se-á com o que ela funciona, em conexão com o que ela faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ela se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu.

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 1. 1998: Baião (clarinete e piano)

Acredita-se que todo compositor deva começar pelo começo: exercitar os estilos de sua tradição histórico-cultural (...até atingir um certo "domínio" sobre os modelos essenciais), ou seja: não é um simples começo. O primeiro grande problema: quando eu sei que estou "pronto" para começar de fato a compor (...após muitos-quantos? exercícios de estilo)?? O jeito é ir fazendo "testes", ou "provas"...

Estas linhas perpassam o modelo tradicional e uma ambiência pseudo-nordestina: partir da macro-forma (A-B-A'), e dos materiais escalares, harmônicos, rítmicos etc. Os "a priori" estão todos já pré-determinados: quais as possibilidades de conectar estes dados?


2. 1999: Lei e Possibilidade (piano solo)

Mas os modelos essenciais da tradição da música ocidental, para um espectador da virada do terceiro milênio, são quase infinitos... pode ser muito motivador, e ao mesmo tempo angustiante. Uma mudança de foco, e abrindo um pouco o diafragma: retirar um pouco o peso dos modelos e dos materiais, e colocar em relevo o processo criativo: o que é possível fazer com 3 pedrinhas? Até que ponto eu posso (consigo) levar às últimas consequências um único gesto inacabado??? [nascimento de uma crença, pautado numa ingênua numerologia simbólica (diabólica?): mas já é uma outra história...]


3. 2004: Tríptico das Hecceidades (piano solo)

E quando perdemos de vista o fim do começo? E se eu começar pelo meio? Eu posso, devo? O que fazer quando não consigo terminar nada, só começar e começar? e de repente me tornei um colecionador de começos? E se eu sentar ao piano, lançar um gesto que caiba nos meus 5 dedos da mão direita, descendo e subindo, mas alternando algumas notas, e escrever no papel, e daí ver o que pode vir depois, e depois repetir o mesmo gesto com alguma variável, e seguindo sempre em frente... de repente um encontro com Messiaen, e agora um contraponto imitativo maquínico, um flash de Debussy e Bartók, e por fim reescrever o começo da terceira peça do op.11 de Schoenberg com alguma coisa meio quase lembrando de longe Ferneyhough? (...e o retorno da crença...)


4. 2009: Três curtas para violão (solo)

Fazemos tantas coisas, coisas tão diferenciadas, e depois de tanto tempo sem terminar nenhuma outra composição, voltamos distraidamente a algumas coisas relativas à composição... pegar o violão, após uma conversa e uma intimação (com um colega chamado João...), e não mais que três dias, três peças curtas, três exercícios de estilo, em três passos despretensiosos. Mas passados mais de 10 anos, este inusitado novo começo já soa mais manso, tranquilo, sem se preocupar se é ou não um exercício ou um vamos ver o que pode sair se eu apertar este botão aqui: "prelúdio"....


5. 2010: Aí, mas onde, como? (quinteto de sopros)

Em algum momento é preciso mudar de ares, e sonhar com outros patamares. Coincidência ou não, a vida também muda, e as velocidades e intensidades já não são as mesmas. Novos vetores, outros planos, outras forças, e uma música que vai aparecendo na beira do aqui-e-agora; não é nem tanto uma questão de esquecimento voluntário dos pré-determinantes do plano de organização composicional, mas não há mais tempo suficiente quando se tem um prazo para despachar a coisa. Até os retoques finais ficam comprometidos neste tipo de empreendimento.



6. 2011: Os passos no rastro (orquestra sinfônica)

O que uma criança muda em nossa vida? O que uma criança dentro da gente muda em nosso modo de viver já adultizados? Um criança parece não ter muitos receios, ou medos, travas do tipo "vou ou não vou", "posso ou não posso"etc. Mesmo sem ter muita noção das dimensões do real, sem ter certeza se pode ou não conseguir fazer algo, elas fazem do mesmo jeito, do jeito que elas sabem fazer. É um grau de liberdade muito intenso, daí alguns dos perigos... Pensar numa composição para orquestra parece ser ainda inpensável neste momento, mas o que pode acontecer se eu tentar pensar? E, pior ainda, se for num tipo de empreendimento igual ao do ano passado, com prazo para despacho?? ...ou estou muito seguro do que estou fazendo, e me vejo na figura de um compositor já maduro e respeitado, ou já estou beirando a loucura e me vejo como uma criança de menos de 2 anos tentando jogar xadrez com uma vacamôôôô...



7. 2012: três efemérides (sax solo)

O sax é um instrumento do naipe das linhas. Entre os tipos de linhas, o sax parece ser o mais interessante: comparem com a flauta, oboé, clarinete... por falar em linhas, estas linhas são frutos de uma grande linha, "o fio dos dias", que foram estimuladas pela experiência do "simulacro de réia", de 2009 (peça para sax, engavetada). O paulo estava lá em 2009 e retorna aqui em 2012. O que seriam das composições e dos compositores se não fossem os camaradas intérpretes? Cada apresentação é uma efeméride, assim como cada coisa que fazemos na vida, assim como a própria vida, assim como a história da humanidade, assim como o universo... mas também, tudo aquilo que não é uma efeméride, fica para sempre guardado em algum canto de nossas memórias, e a cada vez que submerge à superfície de nossa consciência no aqui-e-agora, aparece e escapa em forma de efemérides...


  

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